Testemunho Paulo
Sou o Paulo, tenho 24 anos, e sou de uma pacata terra Duriense, muito bem descrita pelo Eça em A Cidade e as Serras. Tenho vivido os últimos anos pelo Porto. Sou fascinado pelo mundo da Engenharia e a sua capacidade de usar o saber teórico para ajudar a solucionar (alguns d’) os problemas do nosso mundo. Gosto muito de ler e de conversar sobre o que cada um vai lendo, é talvez o melhor incitador a boas conversas. Gosto muito da natureza e ambiente campestre, sou amante profundo de campismo selvagem e desde sempre adepto ferranho de campos de férias em que é a própria natureza quem nos recebe. Vibro com a boa gastronomia portuguesa e com os nossos vinhos de topo mundial. Gosto muito de cozinhar e de passar bom tempo à mesa entre família e amigos.
Nasci numa família maioritariamente católica e sempre soube que o queria ser também. Somos uma família numerosa de todos os lados e todos muito diferentes. Gostamos de passar tempo juntos e temos prazer em receber bem quem se junta. Tive uma infância feliz, brinquei muito e fiz as asneiras mais espetaculares. Fiz bons amigos em cada canto e de meios muito diferentes, algo que hoje me traz muita alegria.
Dentro desta aparente calma e felicidade quase inata, vivi sempre, numa grande dualidade de me sentir fora dos grupos em que estava. O que é estranho dado o meu à-vontade quase inato e fácil extroversão. Não que fosse propriamente excluído deles, mas sentia que não era exatamente como os outros, ou, pelo menos, não era bem como aquilo que eu achava que eles quereriam que eu fosse. Isto acontecia na escola quando era preciso formar grupos, ou nos desportos em que a minha habilidade estava próxima da nulidade ou quando em campos de férias me sentia fora das conversas que pareciam interessantes. Este sentimento de não pertença dói muito. Todos o sabemos e sentimos muitas vezes. Em mim foi-se tornando em algo que escondia e, por nada, queria que alguém se apercebesse desse meu medo. Mas sendo bom aluno, mantendo o sorriso e dizendo uma piadinha de vez em quando, achava que a coisa havia de passar. Nunca ninguém iria notar. No fundo, poderia bem passar sem me saber parte de um grupo, achava eu. Isto foi vincando em mim a ideia de que, em qualquer sítio em que estivesse, seria O diferente. Ora porque não tinha ido a dada festa ora porque não fazia nenhum desporto. Porque não tinha a roupa da moda, ou o cabelo não-sei-o-quê, ou a voz grave ou o nariz menos assim. Insignificâncias que me pareciam centrais para poder pertencer a um grupo. Parece-me que em cada grupo arranjei sempre a razão da minha diferença e consequente impossibilidade de me saber e sentir totalmente parte.
Possibilitado pela grande vulgarização da tecnologia, desde cedo sabia entreter-me sozinho com o computador e, aos meus 12 anos, passei a ter total e livre acesso à internet via ADSL (tão ano 2000). “Quem não admirará os progressos deste século?”. Como ouviu Jacinto ainda em A Cidade e as Serras. No início eram os jogos do Miniclip, depois, procurar imagens para um trabalho da escola, rapidamente apareceu o Youtube e eram os vídeos do Gato Fedorento. Com o muito tempo de internet sem controlo de alguém mais velho, o passo até chegar a conteúdo pornográfico dei-o com muita facilidade. Era algo visualmente nojento e sabia que um mal a evitar. Mas rapidamente tornou-se em algo secretamente meu e de acesso frequente. Parecia um bom ponto de equilíbrio. Posso não pertencer a nenhum grupo e até pode ser que seja mesmo inamável por alguém, mas ali mandava eu. Naqueles momentos eu podia imaginar o que eu quisesse. Tinha eu o controlo. Decidia as regras deste mundo imaginário e ele rodava, sempre comigo no centro. Depois no mundo real podiam-me por de parte à vontade, sabia que teria sempre ali o meu mundinho à minha espera. E lá era eu quem reinava com certeza.
Claro que esta tensão criava uma raiva gigante dentro de mim, que fui aprendendo a esconder. Bem escondida. O medo que alguém descobrisse o segredo era sufocante. Aí sim, fosse quem fosse que viesse a descobrir, eu passaria de certeza a ser inamável. Claro que os meus pais gostavam muito de mim, tinha a certeza disso. Mas se soubessem mesmo tudo tudo tudo sobre mim, bem… talvez não gostassem assim tanto. Isto unido a uma religiosidade mal percebida e vivida levava a uma certeza de que eu era mau. Sabia que Deus não aprovava o que eu fazia, assim, era impossível que Ele gostasse de mim. Se rezava era a pedir uma cura qualquer, uma conversão rápida e eficaz. Algo imediato. Eu, no fundo, também não queria esta vida dupla, mas não estava era disposto a abdicar de grande coisa por isso.
O tempo foi-se passando e o hábito da pornografia aliada à masturbação foi-se intensificando, durante a adolescência e entrada na universidade. Comecei a perceber que o que eu mais admirava em tudo aquilo eram os atores masculinos. Lembro-me de achar isso estranho, mas no meu mundo mandava eu. No fundo, eles tinham tudo o que eu queria. Os corpos e a confiança que nem o Rei David esculpido no mármore italiano. Faziam tudo aquilo que eu só sonhava. Eram claramente homens e tinham o maior gosto nisso. Pelo que se via, parecia que tinham jeito com raparigas e que elas gostavam deles. O passo seguinte foi começar a ver pornografia homossexual. Claro que não dava este nome. Já sabia os sites de cor e tinha vídeos favoritos. Comecei a procurar chats em que ficávamos frente-a-frente dois rapazes aleatórios, cada um no seu quarto e com uma webcam, bem posicionada para não se verem as caras. Ao mesmo tempo que o vício da pornografia e masturbação se intensificava, cada vez procurava por vídeos de teor mais violento e degradante. A violência física e psicológica cria autênticas cenas de violação encenadas frente às camaras. Tudo isto acontecia par-a-par com uma vida de grande compromisso com o bem social e aparente devoção cristã. Era bom aluno, animador de grupos e de campos, metido em vários movimentos e líder de diversas atividades. O exemplo a seguir.
Uma noitada de estudo com um amigo, sozinhos em casa dele, acabou na primeira vez em que abraços e festinhas pareciam sarar uma ferida estranha e até aí desconhecida. Depois desta primeira vez, repetimos várias vezes. Nenhum de nós sabia bem o que se passava, só sabíamos que estávamos os dois metidos em algo novo a qualquer um de nós. Mas não falávamos nisso. A atração física e os seus atos estavam muito longe do que já tinha visto em pornografia, mas a ligação emocional que criámos era impressionante. Nunca tinha experimentado nada assim. Seguiram-se outros pequenos casos e a tensão em mim era insuportável. Entre amigos e família começou a haver quem duvidasse da minha coerência de vida e entrei em stress profundo. Sozinho e sem ninguém com que pudesse falar de qualquer um destes temas, os sentimentos de inferioridade e vergonha ganharam enormes proporções. A ideia de depressão e de sentimentos suicidas deixaram de ser uma coisa meramente cinematográfica. A tensão era muita, não sabia dar um nome, mas a duplicidade de vida era óbvia e magoava-me. Tentava desviar qualquer conversa para coisas superficiais. Quando rezava fazia milhares de promessas que não pretendia cumprir e pedia uma conversão de vida imediata: três segundos em que me entregava a Deus e Ele dava-me uma vida de calma e equilíbrio: sem problemas. Mas mesmo carregando todos estes sentimentos de culpa, inferioridade e a atração pelo mesmo sexo (AMS) e tendo levado isso a atos, poucas foram as vezes em que verdadeiramente parei para pensar no assunto. Para que pudesse perceber o que eu queria fazer com a minha vida. Para perceber que uma vida dupla nunca seria uma vida boa.
Desde os meus 17 anos até há pouco tempo fazia parte de uma Equipa de Jovens de Nossa Senhora (EJNS – Movimento mariano que assenta em reuniões mensais de um grupo de 12 a 15 jovens com um padre e um casal que nos acompanham ao longo de vários temas de formação cristã e partilha de vida), movimento que muito me ajudou na minha caminhada de descoberta e aprofundamento de relação com Deus, em especial per Mariam. Foi quando tinha 21 anos que, numa destas reuniões, o tema que me fazia corar e tremer chegou à mesa ainda durante o jantar. O habitual debate instalou-se: os pro-LGBT e os que acham que isso nem é mesmo uma questão tão crítica. Fica claro quem está de cada um dos lados e começam-se a trocar uns chavões clássicos. Até aqui era só mais uma recorrente conversa em que só me apetecia sair, com medo de me descobrirem, embora cheio de vontade de ouvir as opiniões. Mas tudo mudou quando o padre, depois de algum silêncio, interviu com meia dúzia de palavras simples e claras. Disse que acompanhava alguns casos concretos de pessoas que viviam com atração pelo mesmo sexo, que eram pessoas a precisar de todo o apoio da Igreja. Disse que não eram menos homens ou mulheres. Disse que existiam imensos caminhos de encontro de cada um consigo mesmo e com a sua fragilidade. Disse muita coisa, mas, acima de tudo, disse-o com uma compaixão e uma certeza que nunca tinha visto em ninguém. Este será sempre um tema difícil e em que a escolha de palavras parece um obstáculo, mas para este padre não parecia. Acabámos o jantar e mostrou-nos um vídeo chamado The Third Way, feito pelo apostolado americano Courage, que procura acompanhar pessoas que vivem com atração pelo mesmo sexo numa perspetiva católica de integração saudável da sexualidade.
Nem podia acreditar no que estava a acontecer! Estávamos todos a ver um vídeo em que testemunhos de pessoas que viviam com AMS, casos de vicio e excesso levados ao limite, e que diziam que tinham sido muito bem-recebidos pela Igreja Católica e que era aí que queriam seguir o seu caminho. Depois de 21 anos de grande ligação à Igreja era a primeira vez em que ouvia isto. Caricato, era estar a ouvir isto pela primeira vez e com todo o grupo à volta: tentei manter a postura, sem me mostrar muito afetado com o tema em si.
Cheguei a casa e vi de novo este filme de 40 minutos do Courage. Chorei baba e ranho. Enchi-me de coragem (!!) e passados uns dias enviei uma mensagem a este padre. “Amanhã pode-me dar umas horinhas do seu tempo? Precisava de falar.” A resposta foi positiva e, no dia seguinte, falei pela primeira vez com alguém sobre este assunto. Experimentei o regresso do filho pródigo como nunca poderia ter imaginado. Depois desta conversa perdi o medo de comungar e de falar sobre isto com Jesus que acabava de receber. Percebi que isto tinha de ser matéria de oração. Percebi que confessar-me seria uma arma e não um obstáculo. Fiquei com a certeza que Deus me amava e me queria como sou, por inteiro e na minha fragilidade, era aí que Ele se iria revelar forte e sempre presente. Percebi que era também na Igreja que estava parte do mapa para poder fazer o caminho de volta a casa.
“O Senhor, teu Deus, está no meio de ti
como poderoso Salvador!
Ele exulta de alegria por tua causa,
pelo Seu Amor te renovará.
Ele dança e grita de alegria por tua causa,
como nos dias de festa.”(Sofonias 3:17)
Dediquei-me a ler sobre o assunto, perceber como fechar a porta a tudo o que é pornografia, a trabalhar por amizades sólidas e desinteressadas. A trabalhar pela minha unidade de vida. Apercebi-me da necessidade que tinha de parar para pensar e rezar tudo isto e estar em constante vigilância de mim mesmo, algo que tinha de ser um trabalho diário. Não podia menosprezar o que sentia, por mais custoso que isso fosse. Não queria continuar ao sabor do vento.
Os quase quatro anos seguintes (até agora em que escrevo isto) têm sido de uma beleza imensa. Não quero enganar ninguém: continuo a cair e a duvidar de tudo de cada vez que caio e as feridas emocionais ainda cá estão todas, tal como os seus efeitos. No entanto, passei a saber que me posso levantar e tenho ajuda para isso, não estou sozinho. E isso vale tanto. Deixei de viver numa esperança oca de uma conversão fácil como consequência de 3 segundos de entrega a Deus, e vivo a trilhar um caminho de “a cada dia os seus trabalhos”. Embora caia continuamente no que Santo Agostinho escreve nas Confissões “Dai-me Senhor a virtude da castidade, mas não hoje” (ou algo do género), sei que quero o caminho da minha vida, seja ele fácil ou difícil, mais do que uma vida pacata e sem problemas. Isto muda tudo, porque tendo o próprio Cristo por caminho, o resto tenho por lixo.
Com o caminho que vou percorrendo vou ganhando maior autoconhecimento. Percebo que sou um ser fieri, que me vou construindo a mim mesmo. Aprendi que coisas a que não dei importância no passado, estavam agora a ter consequências, e precisavam de ser resolvidas. Por isso, sei que devo estar atento a mim, à maneira como lido com os outros e comigo mesmo. Porque durante este caminho, mais direta ou indiretamente, estou-me a fazer, a construir-me a mim mesmo. Quero-me fazer cada vez mais filho de Deus, o Paulo que Deus sonhou um dia. Passei a recorrer à confissão e direção espiritual quando tudo aparenta desabar.
Contei esta minha luta e caminho feito a alguns amigos de sempre e com quem passei a falar sobre algo tão pessoal: não podia ter sido melhor. A confiança dada fez com que também eles quisessem partilhar as suas cruzes comigo. Que bom é quando dois amigos têm os seus problemas postos em comum e se ajudam nos caminhos. Entendi que se não fosse esta a minha cruz, seria outra qualquer, que podia ser pior. Podia não ter capacidade de estar à altura. Senti-me bastante como o Frodo Baggins e o Sam Gamgee de Tolkien que avançam para um caminho que não será fácil e em que ver algum tipo de Esperança aparenta insanidade mental. Juntos partilham uma jornada difícil, mas que só os dois a podem fazer. Percebi que o que via em mim de inferior ou inamável era visto unicamente por mim, não passava de anos e anos de uma sensibilidade totalmente distorcida. Era simplesmente mais um no grupo dos rapazes, nem melhor, nem pior e, isso não interessava muito.
Espero que o meu testemunho seja útil não tanto no poder mostrar qual o caminho a trilhar ou como o fazer. Isso também estou a descobrir. Porém, que seja útil em mostrar que, querido leitor, não estás sozinho nisto! Não somos uns pobres coitados sem solução. Também não somos umas aves raras que podem exigir tratamento especial. Não temos de obedecer a uma ditadura identitária que impera na nossa sociedade. Não temos de guardar só para nós o que nos é difícil e faz sofrer. Estamos juntos nisto!
“Home is behind, the world ahead,
And there are many paths to tread
Through shadows to the edge of night,
Until the stars are all alight.
The world behind and home ahead,
We’ll wander back to home and bed.
Mist and twilight, cloud and shade,
Away shall fade! Away shall fade!
Fire and lamp, and meat and bread,
And then to bed! And then to bed!”(parte de uma música cantada por Frodo em The Lord of the Rings)